Cânones - O que é e como é feito um cânone.
postado por Carlos A Correia em 3/11/2009
Você sabe o que é um Cânone?
O cânone mais famoso, e um dos mais simples também, é o cânone Frère Jacques. Se não sabe pelo nome, quase que certamente já o ouviu. Abaixo, uma interpretação moderna muito interessante desse cânone. Não deixe de assistir até o final:
pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=Pa2_oWshsRM
Tecnicamente falando, cânone é uma forma polifônica em que uma melodia (voz) é contrapontada sobre si mesma em um intervalo de tempo e em um intervalo sonoro.
Trocando em miúdos...
Cânone é uma música que é construída por uma voz/melodia principal, chamada dux, e seguida por outras vozes/melodias, chamadas de comes, que se originam da voz principal, seja por imitação ou por inversão.
Trocando em mais miúdos...
Uma melodia começa a ser cantada/tocada por uma pessoa e depois a mesma melodia é cantada/tocada novamente por outra pessoa.
Essa mesma melodia que será tocada em seguida poderá sofrer algumas variações.
Por exemplo, ao invés de ser tocada em uníssono, isto é, a outra pessoa cantar exatamente a mesma frequencia (altura) das notas, poderia ser tocada em uma oitava abaixo ou acima.
Ainda poderia ser cantada em um intervalo diferente. Por exemplo, se a primeira melodia começa cantando em dó, a segunda voz poderia começar cantando em sol (seguindo posteriormente os mesmos intervalos sonoros), em um intervalo de quinta ascendente ou de quarta descendente.
Há ainda outras variações mais "bizarras". A segunda melodia poderia começar cantando inversamente, isto é, de cabeça para baixo, ou de trás para frente (retrógrado)!!!!!
Issssssoooo messssmmoooo!!!!
Ainda há as variações rítmicas, pouco usuais, que seria aumentar ou diminuir a duração rítmica da segunda melodia em relação a primeira melodia.
Parece fácil? A princípio, seria trivial criar uma melodia qualquer e daí pedir a outra pessoa para cantá-la após um pequeno intervalo de tempo.
Acontece que nem sempre, se você não utilizar algumas técnicas para compor cânones, sairá algo harmônico, ou agradável aos ouvidos, com uma coerência e compreensão.
Esse post irá tratar justamente sobre isso: apresentar algumas técnicas de composições.
Agora que você já sabe o que é um Cânone, vamos falar sobre algumas técnicas para compor cânones.
Técnicas para Compor Cânones
Construção Simples de um Cânone:
A ideia de se fazer um cânone é fazê-lo passo-a-passo, ou seja:
- faz-se uma parte da voz inicial (dux ou proposta);
- reescreva-a na outra voz (comes ou resposta) modificando o que for proposto pelo compositor: região, intervalos, inversão, retrógrado, etc...;
- e então completa-se a continuação da voz inicial.
Esse processo se repete até o final da composição. Podendo-se acrescentar uma coda final.
Abaixo um exemplo de construção de um cânone a 2 uníssono com um tema muito simples (clique nas imagens para ampliar):
De acordo com as indicações dos passos, temos:
- aqui é o início do tema sendo cantado em uma das vozes (a voz inicial:dux) e que será repetido em outra voz (comes). A quantidade de compassos para a entrada das vozes pode ser variado pelo compositor. Neste exemplo temos o caso mais simples, apenas 1 compasso;
- o segundo passo é copiar o que foi escrito no compasso inicial do dux na outra voz (a voz que vai acompanhá-lo: comes). Neste passo, o compositor pode aplicar transformações: inversão, aumentação, diminuição, etc. . No nosso exemplo, a repetição é literal e em uníssono;
- completamos a voz inicial encaixado-a com a segunda voz (que é o próprio tema). Aplicando regras de contraponto;
- o compasso do passo 3 é copiado na segunda voz;
- completa-se a primeira voz encaixando com a segunda voz, da mesma maneira que foi feita no passo 3;
- repete-se os dois últimos passos até o final da peça.
É matemática pura.
Mas para que o cânone seja interessante dependerá da imaginação do compositor.
Aqui vão algumas dicas:
Aqui vão algumas dicas:
- variação motívica e rítmica da melodia
- mudança de região (desde que o instrumento permita)
- contraste, e, principalmente, modulação.
Neste exemplo, e na maioria dos que seguem, a voz comes está na mesma altura da proposta, não houve variação intervalar. Isto é só para facilitar o aprendizado.
Cânone Invertido
A ideia é a mesma que a anterior, só que nos passos 2, 4, 6, ..., invertemos (literalmente ou não) os intervalos das notas da primeira voz.
Algumas escalas permitem a inversão direta, não sendo necessária mudanças cromáticas nas notas do comes (nos casos em que a inversão adotada seja literal).
Veja o exemplo anterior transformado em uma inversão literal:
Algumas escalas permitem a inversão direta, não sendo necessária mudanças cromáticas nas notas do comes (nos casos em que a inversão adotada seja literal).
Veja o exemplo anterior transformado em uma inversão literal:
Reparem que no exemplo acima foram mantidas os intervalos entre as notas: quarta justa, quinta justa, segunda maior, etc....
Dependendo do estilo da composição, muitas vezes se quer evitar dissonâncias fortes ou não preparadas.
No exemplo temos no * uma 2a. maior (lá-si) soando ligeiramente "seco" (devido ao salto da voz 2), apesar da nota superior descender em grau conjunto.
Para isso ser evitado, o compositor tem que saber que as notas serão invertidas, e ao construir o compasso 2 do dux pode assim evitá-las.
Como já foi dito antes, depende do estilo de composição, da intenção do compositor, e isso, obviamente, varia de ouvinte para ouvinte, de compositor para compositor.
Abaixo temos um trecho de uma peça para piano que contém um cânone invertido, usando a escala Octatônica, do compositor Carlos Almada (compositor Brasileiro).
O dux está na escala octatônica - modelo b - Coleção I, e o comes na escala octatônica - modelo a - Coleção I.
Ambos os modelos (a e b) são inversionalmente simétricos entre si, o que faz dessa peça uma interessante combinação de técnicas.
O cânone termina a partir do compasso 8.
Cânone Retrógrado
O compositor tem que pensar ao mesmo tempo nas 2 pontas da música: no início e no fim.
Ao escrever o primeiro compasso, já devemos imaginar como será a cadência final da música, i.e., saber, obrigatoriamente, as notas da outra voz para fazer a cadência desejada (a menos que não seja essa a intenção do compositor).
Aproveitei o mesmo motivo anterior para escrever o retrógrado.
Aqui utilizei o início do cânone como cadência final (cadência perfeita: V-I).
Os passos aqui, inclusive para fazer a cadência desejada, são:
- desenhei os primeiros compassos (pegos dos exemplos anteriores) e coloquei-os retrogradamente nos compassos finais;
- desenhei a melodia da voz 1 no último compasso de modo que fizesse a cadência desejada e ao mesmo tempo fizesse contraponto no primeiro compasso na voz 2;
- repete-se o passo 2 acima nas direções opostas até completar todos os compassos desejados.
Interessante fica quando combinamos os cânones invertido e retrógrado.
O chamamos de cânone de mesa.
Vale a pena fazer pelo menos um.
Cânone Perpétuo
Humm... meu cânone preferido.
1a. Técnica:
Procede-se da mesma maneira como no simples, passo-a-passo.
A diferença é que o compositor decide o momento que o cânone vai repetir.
Veja o exemplo abaixo:
No exemplo acima, o compositor decidiu voltar ao início da frase no compasso 7.
Além disso, temos um intervalo exato de 2 compassos que a voz 2 (comes) entra após a voz 1 (dux).
O que faz com que estes 2 compassos (compassos 5 e 6) da voz 1 seja invertível com relação aos 2 primeiros compassos do dux, ou seja, ao construir estes 2 compassos devemos fazer contraponto com a voz 2 (comes) e com os compassos 1 e 2, veja a seguir:
Depois é colocar os ritornellos nas posições corretas.
Eis a versão final:
Poderia colocar uma cadência final após o último ritornello.
2a. Técnica:
Não posso afirmar que fui eu o inventor dessa técnica, mas eu não achei em todos os livros e artigos pesquisados por mim.
Essa técnica é fruta das minhas análises em diversos cânones compostos por mim e por outros compositores.
Ao invés de irmos fazendo a linha melódica (conforme demonstrado nos itens anteriores), fazemos inicialmente uma linha harmônica (base harmônica). E depois disso, através da nossa imaginação (ou intuição, como alguns preferem), é que criamos a linha melódica de cada voz.
Podemos incluir quantas vozes quisermos para o cânone, bastando respeitar a base harmônica inicialmente definida.
Uma ressalva aqui. Geralmente achamos a harmonia como resultado das linhas melódicas, mas com esse processo invertemos as coisas: achamos as melodias baseado na sequencia harmônica criada.
Por isso é bom, mas não obrigatório, que pensemos nas linhas melódicas (ou pelo menos em uma voz) ao construir a sequência harmônica.
Vamos construir um exemplo para entendermos melhor.
Veja abaixo uma sequencia harmônica criada por mim:
Do exemplo acima, podemos retirar diversas linhas melódicas e em quantas vozes quisermos.
Se dois compositores pegarem o trecho acima, cada um fará cânones diversos.
Vamos fazer em 3 vozes: cânone a 3 perpétuo.
Então eu crio 3 linhas melódicas abaixo da sequencia harmônica. Veja abaixo:
Lembre-se que as melodias das vozes foram criadas por mim respeitando as harmonias previamente dadas.
Esse é um exercício também interessante de se fazer.
A ordem da criação das vozes pode ser a mesma ordem da aparição delas ou não.
Pode-se eleger a ordem das vozes após a criação das melodias. A única coisa que devemos nos atentar é que haverá uma emenda de uma melodia na outra (final de uma com início da outra), então temos que pensar nisso ao escrever as melodias.
Repare que em * as vozes contradizem um pouco a harmonia (si e ré para acorde Dó Maior), preferi manter o desenho motívico em detrimento ao harmônico, questão de gosto pessoal. O compositor tem a liberdade de alterar o que ele quiser a qualquer momento.
Veja como ficam as emendas das vozes:
Agora é só distribuí-las nos tempos corretos de entrada e, como é perpétuo, colocar o ritornello:
No *, compasso 10, novamente fiz uma alteração: no original a voz inicial estava em lá e alterei para dó. A minha intenção é de deixar mais clara a harmonia.
Mas quais seriam as vantagens desta técnica?
Ambas as técnicas tem vantagens e desvantagens uma sobre a outra, mas podemos citar como vantagem principal o controle harmônico do trecho do cânone em questão. Inclusive podemos, neste trecho, incluir outros cânones ou outras vozes de acompanhamento respeitando a mesma harmonia dada. É claro que estamos supondo que o compositor queira uma harmonia inerente em sua composição, caso contrário, não precisaríamos nos atentar para isso.
Colocarei em outra postagem exemplos de cânones perpétuos, de Mozart e Bach, com sua harmonia inerente. Mas antes, vamos a um último exemplo:
Cânone Espiral Modulante
Vou tirar a liberdade e falar sobre um cânone específico meu.
Estava compondo o meu Te Deum ((R) 2007 - ver em minhas composições) e cheguei no momento em que as vozes solos (SATB) iriam entrar para cantar 4 parágrafos do texto.
Como de costume, estava no ônibus, indo para meu trabalho, e pensando em como faria isso...
Eu queria fazer um cânone mas ficaria muito longo, perdendo o equilíbrio formal da obra. Então decidi comprimir os parágrafos, fazendo com que cada voz cantasse um parágrafo, entrando em momentos diferentes.
Dessa maneira, dava para fazer um cânone e ainda manter o equilíbrio formal.
Fiquei pensando em que tipo/estrutura de cânone melhor adaptaria ao texto e ao estilo da música, uma vez que os parágrafos tinham tamanhos diferentes.
Enquanto estava no ônibus, decidi fazer um cânone espiral modulante: "cânone duplo espiral modulante a 4 vozes, uma voz invertida".
E eis como utilizei-o no Te Deum:
Parte IV - comp. 57 a comp.64
Deixo para vocês analisarem e chegarem a suas conclusões. Não há nenhum mistério, é apenas Matemática Pura!!!
Experimentem fazer tais testes, exercícios, é muito compensador.
É gratificante ver algo surgir do "nada", apenas da sua imaginação, principalmente quando seguimos um plano de desenvolvimento.
Se alguém tiver algum outro cânone interessante, e quiser postá-lo aqui, me envie um e-mail, incluindo o autor e dados interessantes que queira mostrar. Talvez não consiga colocar todos.
abraços,
fonte: anotações das aulas que tive com o mestre e prof. Carlos Almada e minhas próprias análises e experimentações.
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