A Importância da Análise Musical para a Composição e Interpretação - Parte II: da Análise para a Interpretação
postado por Carlos A Correia em 5/06/2016
PARTE II: da Análise para a Interpretação
Você sabe qual é a importância de uma Análise Musical para você compositor/arranjador ou para você intérprete (cantor ou instrumentista)?
No post anterior, eu comecei a falar sobre a importância que se tem do intérprete em realizar a análise musical sobre uma obra, de modo que ele, o intérprete, consiga entender realmente a intenção do compositor, e como aquela obra pode ser melhor interpretada para o deleite dos ouvintes.
E, baseado nisso, há um texto incrível do artigo que exponho aqui:
ROTHSTEIN constata a importância das escolhas feitas pelo performer:
"É o performer quem controla o caminho no qual virtualmente cada aspecto do trabalho é transmitido para o ouvinte. Que aspectos da música são “transmitidos”, quais são ocultos, quais são reconhecidos por falarem por si mesmos – estes são apenas algumas das decisões que o performer deve tomar. Determinar quais são estes aspectos é tarefa da análise – a análise é mais bem realizada quando contém a combinação de intuição, experiência e razão."
O texto a que me refiro, como explicitado na Parte I, é a dissertação "PRELÚDIOS TROPICAIS DE GUERRA-PEIXE: UMA ANÁLISE ESTRUTURAL E SUA PROJEÇÃO NA CONCEPÇÃO INTERPRETATIVA DA OBRA", de MARGARETH MARIA MILANI, para a Universidade Federal da Bahia.
Atenção: se começar a ler esse post sem ter concluído o anterior, é bem provável que algumas ideias fiquem desconexas. Portanto, sugiro fortemente, se ainda não o fez, a leitura do post anterior:
Continuemos a explanação...
Logo em seguida, no texto original, é citado que para alguns autores a análise está implícita quando o músico interpreta uma obra.
E que também a análise nunca pode ficar acima da própria obra musical, numa possibilidade de engessar uma interpretação devido a ficar rigorosamente presa a análise.
Por isso, é levantada uma questão:
Há uma interpretação ideal? E esta é conseguida através apenas de análise?
Na minha opinião, não há apenas uma interpretação ideal.
Até mesmo a ideia original do compositor pode ser sucumbida pela própria interpretação do músico. O próprio músico pode dar, dentro da sua interpretação, ênfase e nuances da música que nem mesmo o compositor "compreendera" em sua obra!
ARROJO define o processo performático como um processo das relações possíveis entre leitura da obra musical e interpretação, interpretação e recriação, onde o intérprete se define como um recriador. “A partir do reconhecimento de que há pelo menos um outro autor a habitar o texto musical no processo interpretativo, acaba-se por desmistificar o tradicional esforço de fidelidade absoluta ao original”.(apud LABOISSIÈRE, p. 109)
E é por isso que alguns autores veem a análise como um suporte para a melhor interpretação:
COOK propõe resolver o embate entre Análise e performance fundamentando as questões: “o que a análise pode nos dizer”, “o que faz de uma análise boa e outra ruim”, “boa em que sentido?”, “boa para que?” (p. 215)
E o que dizer então sobre a música propriamente dita?
(..) LIMA enfoca que a música,por ser uma arte não representativa, revela em seu fazer artístico comportamentos cognitivos altamente subjetivos e por vezes não traduzidos para a linguagem verbal: "É uma arte multidisciplinar por excelência, uma vez que se conecta com outras linguagens e outros saberes, no intuito de expressar a sua dimensão sintática, semântica e pragmática. Para a sua compreensão e execução ela se apropria de elementos diversos assimilados de outras áreas de conhecimento, [...] e de outras ciências, com o intuito de desenvolver aptidões físicas, mentais e psicológicas que interagem não só no momento da execução e do aprendizado musical como também, na formação harmoniosa da personalidade humana. (p.26-27)"
Então continuamos com o mesmo problema: como se dar a melhor performance? Como o intérprete precisa atuar ou proceder para que haja uma busca pela melhor interpretação?
A autora então cita uma proposição:
Diana SANTIAGO constata a escassez e a necessidade da ampliação de estudos na área de performance musical a fim de se compreender melhor o modo como são elaborados os planos de performance pelos músicos. (p.1) A autora também enfoca a necessidade de construtos teóricos pelos performers: "É necessário que os músicos práticos construam seu próprio referencial teórico, sem perder de vista que ele estará sempre em processo de fazer-se – ou se firmará como dogma científico, selando a morte do saber.(p. 116)"
Talvez, se ainda não há, deveria existir uma cadeira acadêmica-teórica-prática para a função de interpretação.
Há uma importância de se conhecer as teorias musicais para se ter a ideia da abrangência do que se pode extrair de uma música. Conhecer suas partes e o seu todo!
Janet SCHMALFELDT, (...) Sob seu ponto de vista fazer interpretações envolve a interação de todas as dimensões musicais “motivo, idéia, frase, progressão harmônica, cadência, ritmo, compasso, textura, condução de vozes, dinâmica, instrumentação, plano tonal geral”. É importante reconhecer que a forma da música não pode ser separada de seu conteúdo.
O conhecimento explícito e implícito leva ao intérprete a fazer suas devidas escolhas:
Fazer escolhas dentre várias possibilidades é uma parte importante de qualquer espécie de interpretação, tanto na análise quanto na performance. Mas em contraste com esse caminho no qual decisões analíticas são muitas vezes consideradas, decisões de performance sugerem que muitas (ainda que não todas) possibilidades de escolha não são o 'certo' ou 'errado', mas simplesmente como diferentes, conduzindo a perspectivas variadas. (apud LESTER, p. 211)
Fazer escolhas nem sempre é fácil.
Mas quando estamos acolhidos com conhecimento base no assunto, uma escolha pode ser referendada muito mais facilmente.
Mesmo que mais tarde possamos nos arrepender daquela escolha, esta sempre nos servirá de aprendizado para futuras decisões.
Aprendemos sempre com nossos erros e acertos:
No 'campo dos saberes' um eterno embate se faz presente entre os diversos domínios do conhecimento humano. Nas relações entre análise, interpretação e performance musical o foco não é diferente. As tarefas ora se completam ora se contradizem.
Nesta perspectiva não podemos buscar respostas 'verdadeiras', mas sim, significados que ao menos calem parte dos anseios que afligem os musicistas. A reflexão em torno das práticas musicais possibilita novos caminhos, ainda não trilhados, escolhas referendadas que tornem o fazer musical consciente. Simbiose, fusão, questionamentos e expectativas.
Assim sendo, temos na análise um apoio para nossas decisões.
E, quanto maior a qualidade das análises feitas por nós, como a maior experimentação de nossa parte - digo, abrangência-, vamos moldando nosso conhecimento e cada vez mais facilidade no processo do entendimento da obra, e assim uma maior facilidade de escolhas.
É bem verdade que ampliamos também a gama de escolhas.
Se antes tínhamos apenas um caminho conhecido para percorrer um trajeto, aos poucos vamos ganhando mais e mais opções de trajetos.
Esse aumento de possibilidades de escolhas nos traz o benefício da dúvida das opções que temos em mãos. Não ficamos mais limitados a uma única ou poucas opções.
Por outro lado, decidir por qual escolha pode ser uma tarefa árdua para qualquer um.
Mas a decisão também recai no que queremos conseguir no final das contas, e assim a análise também se mostra eficaz, pois podemos não só analisar a obra que será interpretada, tocada, mas também o que nós já temos feito até o momento. Olhar para o passado para saber o que já consegui realizar e o que ainda não consegui.
Ultimamente, essa abordagem tenho feito comigo mesmo.
Tento analisar alguma obra de terceiros e reconhecer algum aspecto dela que eu ainda não tenha feito em minhas obras, ou que não me aprofundei, testei, assimilei.
Mesmo que em um primeiro momento não veja tal aspecto sendo reproduzido em minha música, certamente minha percepção musical aumentou, e talvez em alguma obra futura isso possa vir a acontecer, até de modo inconsciente da minha parte.
Esse olhar crítico e essa análise retroalimentada pode ser útil para florescer novas ideias e novos rumos que posso tomar em minhas músicas.
Do mesmo modo, podemos trazer para o intérprete.
Assim sendo, a análise continua sendo um ferramental importantíssimo para nós músicos! Tanto compositores quanto instrumentistas e cantores. E quiçá até para produtores musicais!
Podemos encontrar na Análise um dos canais para inter-relacionar os elementosE em seguida:
musicais contidos no texto, sua interpretação e a comunicação musical através da performance. A Análise possibilita ao intérprete romper com modelos de expressão pré-estabelecidos, de concepção de unidade formal, possibilitando o uso de novas propostas timbrísticas, efetivando potencialmente o processo de criação na interpretação e na performance: "Há determinados pontos na dinâmica, no tempo, na estrutura formal que são verdadeiros “buracos” sem fim de questões. Devemos justamente procurar nessas lacunas algumas idéias novas: é aí que a pesquisa, a interpretação e a análise devem questionar a realidade do 'físico'.(HESPOS, p. 20)"
Os benefícios da Análise são discorridos em inúmeros artigos e encontros sobre Música. Sua efetividade no desenvolvimento do "saber-fazer" do instrumentista pode ser mensurada através da pesquisa.
Em GUBERNIKOFF encontramos a afirmação de que “a questão da análise musical é central em toda discussão sobre pesquisa em música”. (p. 136)
ASSIS comenta que “sendo a análise uma atividade de 'desfazer a trama', então ela é uma atividade que realça estas relações nos colocando em contato íntimo com a obra”.(p. 84)
Seria então a análise musical o remédio necessário para a cura do "como fazer"?
A minha opinião é que realmente a análise é um remédio, dentre outros, que ajuda e nos fortalece o saber do "como fazer".
É como um exercício diário que nos tonifica a musculatura.
Quem corre sabe que é necessário se manter correndo por diversos dias antes da corrida.
Manter a musculatura e todos os órgãos sadios para um melhor aproveitamento não discorre de uma hora para outra. É necessário esforço e persistência!
Acrescento aqui as palavras contidas no texto para expressar o que quero dizer:
Analisar uma obra é uma tarefa complexa, pois requer referencial teórico amplo e
muitas vezes indisponível. O próprio termo é objeto de discussão em relação à visão de mundo do analista, podendo ser visto sob diversas óticas e parâmetros.
CORRÊA declara que o processo analítico pode ser compreendido em duas etapas básicas: a identificação dos diversos materiais que compõem a obra e a definição, constatação e explicação da maneira como estes materiais interagem fazendo a obra 'funcionar': "Análise é entendida como o processo de decomposição em partes dos elementos que integram um todo. Esse fracionamento tem como objetivo permitir o estudo detido em separado desses elementos constituintes, possibilitando entender quais são, como se articulam e como foram conectados de modo a gerar o todo de que fazem parte. Justifica-se esse procedimento por admitir-se que a explicação do detalhe sobre o conjunto conduz a um melhor entendimento global.(p. 33)"
Para KOELLREUTTER analisar é o “ato de examinar minuciosamente e criticamente a obra musical”,(p. 14) enquanto o compositor Hans-Joachim HESPOS afirma que: "...analisar corretamente significa buscar não só o que se encontra por trás da partitura, dos signos, do discurso, mas também aquilo que está subliminar na própria idéia que fazemos da Música e suas manifestações ...(p. 108)
Segundo PIENCIKOWSKI: "Analisar uma obra é lê-la no sentido amplo do termo, isto é, esclarecer um diálogo com ela, procurando em seu interior os elementos que nos interrogam e que nos parecem mais significativos. (p. 63)"
Sim.... Analisar não é fácil.
Requer horas de estudos, de dedicação e orientação.
Além disso, ainda há lacunas subjetivas que nem sempre teorias e teóricos chegam a um consenso.
A teoria sempre está atrás daquilo que foi feito, e não ao contrário. Isto é, a teoria é sempre formulada para tentar atender e explicar o que foi ou está sendo feito.
É claro que baseado em uma teoria, podemos chegar a conclusões, ou melhor, traçar novos rumos para novas finalidades.
Por exemplo, o estudo da harmonia tonal fez com que surgisse uma harmonia atonal (se é que poderíamos chamar de harmonia).
Assim, uma nova formulação de antítese, o mundo atonal, foi proposto e então novas obras começaram a ser compostas para atender tal finalidade: o dodecafonismo é um exemplo em que a teoria surgiu antes do processo criativo, já que ocorreu um estudo para que ocorresse uma negação da tonalidade baseada em alguns princípios.
Mas não é isso que ocorre em um mundo natural.
As diversas propostas de abordagem da Análise, correntes, modelos, podem permear a prática musical do intérprete de maneira que este costure a obra, quer pela observância da constância de ocorrências, quer pela singularidade dos contrastes. Na reflexão de GERLING, "Analisar pode significar a busca de uma consciência interpretativa no que se toca e se ensina, e que permite estabelecer níveis hierarquizados de intenção, contenção e ação, ou seja, no ordenamento de impulsos, direcionamento e dinâmica. (p. 5)"
Como citado também no texto, Bent sugere que é de difícil de se definir a fronteira de uma análise, e que esta transcende os meios teóricos para se chegar a alguma conclusão, ou as "verdades" inerentes a uma obra.
...como de fundamental importância o ponto de contato entre a mente e o som musical, ou seja, a percepção musical.
Aliás, ele, Bent, cita até que não há uma "verdade" a ser buscada na obra, pois ainda depende do observador, o analista, que se debruça sobre a obra.
Termino, porém, com um pensamento do grande Schoemberg, presente no texto:
Analisamos por que não estamos satisfeitos com a compreensão da natureza, efeito e função de uma totalidade enquanto totalidade, e quando não somos capazes de remontar com exatidão aquilo que separamos, começamos a não fazer justiça àquela capacidade que nos deu a totalidade juntamente com seu espírito, perdendo fé em nossa melhor habilidade – a de receber uma impressão total. (SCHÖENBERG apud LIMA, p. 149)
Gostaria muito de que você leitor buscasse a obra, a que estou me referindo, para lê-la.
Peço que não fique apenas por aqui, em meus textos, mas também complete seu conhecimento com a leitura do artigo, e a pesquisa de mais materiais na internet, ou mesmo com apoio de algum profissional ou alguém do ramo.
Com esses dois posts, pretendo mostrar a você a importância de se aprender a analisar obras musicais, seja ouvindo-as ou se debruçando na partitura, e então tirar conclusões por você.
É claro que saber o que queremos analisar, e o objetivo desta, é fundamental para traçarmos uma estratégia e termos as respostas.
Precisamos formular, então, perguntas do que queremos extrair de uma obra.
Tais perguntas nortearão o que precisamos apreender sobre uma obra.
Ter conhecimento de uma base teórica é algo mais do que necessário para ampliarmos os nossos horizontes.
Não sendo assim, você estará limitado a poucas possibilidades e possíveis trajetos. Suas respostas serão quase sempre as mesmas!
Criar um repertório maior e mais diversificado amplia e expande seu universo. Traz enormes benefícios a você intérprete e ou compositor.
Desde jovem, mesmo sem ter uma base teórica forte e completa, pude analisar de minha maneira as músicas, compreendê-las em muitos termos.
Mas nunca havia alcançado o que a base teórica, buscado por mim, me proporcionou.
Mesmo sem ter tal base teórica e analítica, pude compor diversas músicas. Algumas delas até aproveitáveis em seu todo, outras apenas parcialmente.
Mas quando acrescentei em minha formação a base teórica, a base crítica, e a gama de análises musicais, minhas composições deram um salto enorme em qualidade e diversidade!
E até pude pegar aquelas minhas músicas iniciais, que haviam elementos apresentáveis, e transformá-las naquelas como que eu realmente gostaria que tivessem nascidas.
Somente aqueles que praticam a análise consistentemente sabem realmente da importância que estou pregando aqui.
É, como já exemplifiquei, como o corredor que treina todo dia e não sente mais a dificuldade daqueles que pouco ou nunca treinam.
Também não estou aqui dizendo que a partir de agora você precisará esquecer sua vida e todo santo dia você irá analisar uma obra. Não é isso!
Mas procure, de agora em diante, ao escutar uma música, colocar seus ouvidos e seu cérebro atentos a análise musical.
Faça isso por você! E verás, gradativamente, uma mudança cultural.
Quero muito ouvir sua opinião de tudo que foi exposto até aqui. E o quanto todo o texto pode ter impactado você.
Coloque seu comentário aqui, e não deixe de ler a obra referida por completa AQUI!
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